"Hoje nós deixamos Bangui e fomos até Mabaiki, ao sul. Ao longo da estrada pudemos ver casas de muçulmanos destruídas em todos os povoados. Quanto mais entramos em contato com os locais, mais nós percebemos quão complexa a é a situação.
Paramos na cidade de Pissa e perguntamos aos moradores locais sobre suas experiências com o grupo Seleka. A resposta deles reflete a complexidade do momento que estão vivendo. Eles nos contaram que oito mercenários Seleka dominaram a cidade durante dez meses. Eles levaram tudo – motos, carros, televisões e outras propriedades. Por fim, como a população local não parou de reclamar junto ao governador, algumas tropas vieram de Bangui para proteger os moradores. Eles fizeram um bom trabalho e os moradores são muito gratos.
Nós também paramos no vilarejo de Perengo, onde o palácio do ex-imperador Bokassa servia como centro de treinamento militar para membros do Seleka. Aqui, nós encontramos alguns jovens que vieram do norte e do leste para integrar o Seleka a fim de ter um emprego e uma fonte de renda. Eles pertenciam ao grupo de mais de mil soldados esperando por treinamento. Agora, desde que o Seleka foi enfraquecido, cerca de 800 soldados permaneceram abandonados. Eles não são muçulmanos, mas por causa de sua associação com o Seleka, compartilham o mesmo destino. Eles estão impossibilitados de retornar para as suas cidades e foram rejeitados inclusive por seus pais. Nós oramos por eles, pois queremos vê-los superar essa fase.
De lá, viajamos para Mbaiki e passamos a noite numa casa de hospedagem cristã. Foi a oportunidade certa para falarmos com os líderes religiosos locais. Eles estão engajados em uma plataforma inter-religiosa que realiza conciliação durante a crise. Quando o Seleka recuou para o norte, as ameaças a eles forçaram os muçulmanos a saírem. Os cristãos não têm condições de proteger os muçulmanos, mas pelo menos eles puderam impedir que milícias anti-Balaka destruíssem a mesquita local. À medida que os muçulmanos deixavam a cidade, eles agradeceram os cristãos pelos esforços em ajudá-los.
Ao serem questionados sobre a perseguição aos cristãos durante a crise, os líderes das igrejas deixam claro: o Seleka veio para islamizar o país por meio da destruição, empobrecimento e subjulgamento, como forma de forçar a população local a seguir o islã. Por muitos anos, as tribos locais foram conquistadas e convertidas ao islamismo da mesma forma.
A campanha Seleka seguiu o mesmo processo. Uma vez no poder, todos os muçulmanos foram protegidos e muitos foram beneficiados com recompensas. Outros até mesmo passaram a integrar o Seleka. Muitos pastores testemunharam que eles viraram alvo, pois eram vistos como um pilar das forças espirituais detrás da população predominantemente cristã do país.
Nós nos perguntamos se seria possível para a Igreja se envolver em um diálogo com os muçulmanos sob essas circunstâncias, mas líderes das igrejas nos asseguram que apesar de desconfianças de ambos os lados, o evangelho de Jesus Cristo demanda que cristãos se envolvam com sinceridade e integridade. Sem isso, o evangelho não poderá vir a ser luz, afirmam. Os líderes nos disseram que ocorreram muitas ocasiões nas quais cristãos e muçulmanos buscaram a ajuda uns dos outros.
Nós fomos muito encorajados pelas decisões dos líderes. Reconciliar as pessoas em meio às circunstâncias tensas é um dos maiores desafios que a Igreja enfrentará nos próximos anos. A Portas Abertas está comprometida a apoiá-los na medida em que, com amor, eles alcancem aqueles que os agrediram. Todos necessitam fortemente de nossas orações. Nós devemos pedir para que o Senhor continue a dar-lhes graça para reagir aos desafios atuais da mesma forma que Jesus faria.
Nos próximos dias viajaremos para Boda, onde muçulmanos e não-muçulmanos vivem separados pelas forças francesas Sangari. A tensão está formada. Jornalistas da agência Al-Jazeera virão para reportar e filmar a situação; a organização Caritas distribuirá kits de emergência e nós [da Portas Abertas] encorajaremos os cristãos atendendo as suas necessidades."
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