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Pesquisa FAPESP: A relação dúbia entre igrejas neopentecostais e o demônio

Esta notícia foi republicada aqui apenas para fins de informação. A mesma não representa a opinião do Gospel+ e sites relacionados.

“Sai, capeta!” Esse literal “grito de guerra” surge no imaginário de boa parte das pessoas quando ouve falar na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e suas “colegas rivais” neopentecostais, por causa por chamados ritos de “descarrego”, supostos exorcismos em que espíritos demoníacos são intimados a se “manifestar” do “interior do indivíduo” (seja nos templos das igrejas, seja, ao vivo e em cores, pela televisão), em geral demônios saídos das “profundezas” das religiões afro-brasileiras. O diabo, porém, não parece, para os pastores, tão feio como se pinta. “Graças a ele e à dinâmica em que nada lhe escapa, a IURD aumenta sua possibilidade de crescimento.

Contrariamente ao que afirma, a igreja deve boa parte de sua expansão e constituição a esse ser. Logo, mais do que candomblé e umbanda, o que a igreja necessita de fato é dialogar com uma tradição sociorreligiosa em que se possam encontrar sofrimentos equivalentes à figura do diabo”, explica o antropólogo Ronaldo de Almeida, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap, cujo estudo A Igreja Universal e seus demônios (Terceiro Nome, 149 páginas, R$ 28,00) foi lançado recentemente com apoio da FAPESP.

Segundo a pesquisa Economia das religiões, publicada pela Fundação Getúlio Vargas em 2007, a população de evangélicos cresceu de 16,2% (2003) para 19,9%. O estudo também revela que, com a crise metropolitana nas últimas décadas, o inchaço das grandes cidades, o aumento da violência e a piora do acesso aos serviços públicos, as igrejas evangélicas neopentecostais tiveram um crescimento mais expressivo nas periferias. Com o surgimento da “nova pobreza” as pessoas seguem em geral dois caminhos: ou se apegam a religiões de práticas mais intensas, como as pentecostais, ou perdem a esperança e viram sem religião. O estudo revela que o crescimento dessas igrejas nas áreas metropolitanas também pode ser entendido como uma forma de ocupar uma lacuna deixada pelo Estado, com desemprego, “favelização”, precariedade de acesso aos serviços públicos. Se a “velha pobreza”, a das áreas rurais, continua católica, a “nova pobreza”, da periferia das grandes cidades, estaria migrando para as instituições neopentecostais. “Se a ‘teologia da libertação’ produziu a categoria do pobre como ator político na cena pública, a ‘teologia da prosperidade’ da Igreja Universal produz o pobre como ator econômico e o torna responsável por sua salvação. Seu modo de ritualizar o dinheiro e fortalecer a eficácia da ação (via incorporação da feitiçaria no exorcismo) lhe dá uma grande amplitude discursiva”, analisa a antropóloga Paula Montero, da USP e do Cebrap. “Nessa nova configuração, os códigos referentes à saúde e à prosperidade, como uma ética do mundo dos pobres, têm apresentado grande capacidade de mobilização, um capital social que faz com que seus ritos conquistem estádios de futebol, televisões e outros espaços.” Será que os bispos da IURD querem mesmo que o capeta saia?

Pecado – “As representações do diabo são o eixo a partir do qual o universo simbólico desta igreja é constituído. É ele que causa as doenças, conflitos, desempregos, alcoolismo, leva ao roubo, como são Jesus e o Espírito Santo que curam, acalmam, dão saúde, prosperidade material e libertam do vício e do pecado. Nessa visão se nega por um lado a ação de outros seres espirituais como se nega a responsabilidade humana e, assim, as origens históricas do mal e do bem”, avalia a socióloga Cecília Mariz, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Se o catolicismo, desde o século XVIII, vem abandonando satanás e seu séquito, para a doutrina neopentecostal é preciso eliminar a presença do demônio. “Para eles, as outras denominações religiosas são pouco engajadas nessa batalha, ou até mesmo são espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se ‘disfarçariam’ em divindades cultuadas nesses sistemas, caso, sobretudo, das religiões afro-brasileiras, cujos deuses são vistos como manifestações desses demônios”, completa o antropólogo da USP Vagner Gonçalves da Silva. “Quem não tem Deus, tem o diabo”, afirmou um pregador ouvido por Almeida em sua pesquisa de campo. “O que é enfatizado na evangelização não é o afastamento de Deus por causa do pecado e, assim, a necessidade de ‘conversão’, mas a aproximação com o diabo, preferencialmente gerada pela frequência aos terreiros no passado do fiel, o que requer a ‘libertação’”, analisa o antropólogo. Esse “culto de libertação”, segundo o pesquisador, pode ser lido, porém, como uma inversão simbólica dos rituais encontrados nos terreiros. Num paradoxo, se a relação inicial entre os dois universos religiosos está fundada sobre oposição e confronto, a IURD não deixa (é até mesmo obrigada, para sua própria sobrevivência, a fazê-lo) de reconhecer a veracidade do que ocorre na umbanda e no candomblé. “Esse reconhecimento garante que a possessão efetivada num terreiro se reproduza também no templo, embora nesse lugar a ‘manifestação’ tenha a função de revelar as estratégias do diabo para escravizar, espiritual e materialmente, o homem.” Segundo Almeida, ao acreditar que está combatendo uma fé inimiga, a Igreja Universal acabou, na verdade, criando uma cosmologia de seres malignos, povoando seu inferno com essas entidades. “Por um sincretismo às avessas, a IURD acabou produzindo sua pombagira, seu exu Tranca-Rua, sua Maria Padilha. Às avessas, porque a síntese gerada buscou no polo negativo da religiosidade cristã (o diabo) o elemento equivalente às entidades, e é graças a essa inversão que a igreja pode ainda manter um discurso proselitista e a exigência de exclusividade, característica evangélica”, nota o pesquisador.

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Cultos – Dessa forma, a Igreja Universal combate aquilo que, em parte, ajudou a criar, e não são apenas os ex-praticantes de religiões afro-brasileiras que comparecem, agora convertidos, aos cultos da Universal, mas também suas antigas divindades, ainda que transformadas. “O neopentecostalismo, ao se distanciar do pentecostalismo clássico, e ao se aproximar da umbanda e outras religiões, ainda que seja para negá-las, passou a traduzir para o seu sistema o ethos da manipulação mágica e pessoal, mas agora ‘sob nova direção’, colocando o ‘direito’ no lugar do ‘favor’”, analisa Vagner. “A igreja elaborou, pela guerra, uma antropofagia da fé inimiga. As diversas crenças do cenário religioso brasileiro não são apenas referências a partir das quais, pelo contraste, se possa pensar a identidade da Universal. Mais do que pela oposição, a igreja rege seu processo de expansão por essa antropofagia religiosa, na qual as mais diversas crenças podem ser negadas em seu conteúdo original e, ao mesmo tempo, assimiladas em suas formas de apresentação”, observa Almeida. Daí sua capacidade de “abrandar” o ascetismo pentecostal, suavizando o estereótipo do “crente” protestante tradicional e histórico. A nova igreja passa a valorizar os prazeres terrenos e a estimular o consumo de bens materiais como sinais de salvação. “Ao contrário da invocação umbandista, no neopentecostalismo exu não é mais chamado para atuar como mensageiro ou ‘sujeito do favor’. Agora sua função é vir para ser expulso em nome da cura e da salvação do possuído. Não sendo mais a morada do ‘maligno’, o crente liberto ‘expulsa o favor’ e afirma o seu ‘direito à graça divina’, falando diretamente com Deus”, explica Vagner. Na Universal, o fiel “toma posse da bênção”.

“No caso dos terreiros, a ‘cobrança pelos serviços’ personaliza o pagamento, fazendo dele suspeito de interesse privado e exploração. No caso da Universal, esse ato é entendido como ‘doação’, uma demonstração de fé endereçada diretamente a Deus, para desafiá-lo. A oferta cria uma aliança entre Deus e o homem, pela qual Ele fica obrigado a uma restituição imediata”, observa Paula Montero. Nas palavras de Edir Macedo, bispo da Universal, o crente se torna “sócio de Deus” e nessa condição privilegiada passa a aproveitar as bênçãos do Senhor. “Para provar a própria fé e ganhar as recompensas, os fiéis são induzidos a realizar sacrifícios ou desafios financeiros. Quem não paga o dízimo, advertem os pastores, rouba a Deus. Como o tamanho da fé se mede pelo maior ou menor risco que se assume no ato de doação, quem quer mostrar grande fé precisa assumir grandes riscos financeiros”, explica o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC-RS. “O modo sacrificial que o dinheiro assume nos ritos da Universal retira do sacrifício o seu caráter violento e bárbaro (em suposta oposição aos ‘presentes’ ofertados nos rituais afros aos deuses) e o transforma em uma relação abstrata de risco, como em um investimento econômico”, completa Paula. A base dessa ideologia pecuniária é a chamada “teoria da prosperidade”, a aliança com Deus, garantia de que todos podem ter aquilo que quiser se tiverem fé e a demonstrarem com convicção. Isso inclui casa na praia, carros do ano, sucesso nos negócios e mesmo no amor. Não interessa se é um bem material ou espiritual. “A Universal procura maximizar a provisão de compensações concretas e imediatas neste mundo, adaptando sua mensagem à vida material e cultural das massas pobres a fim de dar algum sentido, a explicar a razão de se encontrarem vivendo como vivem, a justificativa de uma dada posição social”, nota Mariano.

O dinheiro não está presente apenas nas práticas da Universal, mas igualmente em outras práticas religiosas. “Mas apenas nela os fiéis se reúnem, semanalmente, para o culto à prosperidade, em que ouvem sobre a legitimidade da abundância e assistem a uma pregação que parece uma ‘palestra’ sobre coisas do mercado”, analisa a antropóloga Diana Nogueira de Oliveira Lima, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). “A dinâmica cultual e sua mídia são perspicazes no despertar das crenças e das noções mágicas da religiosidade popular, tirando dividendos à instituição e negando qualquer acusação de ‘mercantilização do sagrado’. A Universal se estruturou como uma igreja brasileira de exportação, presente em vários países do globo (EUA, França, entre outros), dirigida por um Bispo S/A, faturador de sucesso empresarial e político, tendo poder de penetração pública e estratégias, também anônimas, entre os indivíduos e clientes anônimos. Daí ser uma igreja de ‘prestação de serviços’, uma instituição religiosa secularizada pela relação empresa-clientes”, escreve o teólogo e sociólogo Odêmio Ferrari, da PUC-SP, autor de Bispo S/A: a Igreja Universal e o exercício do poder (Ave-Maria, 264 páginas, R$ 29,00). “Sua originalidade é ter produzido uma dupla inversão: por um lado, seus ritos generalizaram a ‘feitiçaria’ no espaço público e, por outro, fizeram coincidir caridade e prosperidade econômica. Afinal, em suas práticas rituais mais importantes, a Universal recupera as categorias clássicas do cristianismo: o exorcismo e o donativo em dinheiro”, avalia Paula. Não sem razão, o apóstolo Hernandes, do casal dirigente da Igreja Renascer em Cristo, igualmente adepta da “teologia da prosperidade”, ao ser acusado de estelionato, defendeu-se: “Estamos sendo perseguidos pelo próprio diabo”.

Doença – “A Universal e outras respondem aos apelos imediatos cotidianos. Mais do que à doença, ela responde ao medo de alguma doença estigmatizada. Além de nos livrar dos problemas financeiros, promete que vamos ficar ricos. Ela é universal como ampla interlocução com a sociedade, visando um maior espaço público e, se possível, a conversão dos interlocutores ao reino de Deus”, analisa Almeida. No caminho dessa universalidade, além dos esforços conhecidos de se utilizar da melhor forma os meios de comunicação, incluindo-se mais recentemente a internet (forma, ao lado da música, de ter acesso aos jovens), os neopentecostais vêm ganhando espaço na política. “As igrejas Universal e Assembleia de Deus souberam aproveitar seus modelos autoritários como instrumento para conquistar votos juntos aos fiéis e implantar um regime de disciplina e hierarquia nas suas bancadas, tirando a autonomia de seus pares no Legislativo”, analisa o sociólogo Saulo Baptista, autor de Pentecostais e neopentecostais na política brasileira (Annablume, 430 páginas, R$ 67,00). Até os anos 1980, a posição dessas igrejas era de absenteís­mo social e político, ainda que com uma ferrenha dimensão anticomunista e de apoio ao regime militar. “A política pentecostal é exemplificada por posturas como acreditar ser pecado fumar e beber, mas não legislar em favor de elites e sonegar recursos para alimentação, moradia e saúde dos muitos necessitados. No sentido ético, participar de um esquema de corrupção não é tão condenável, desde que beneficie a igreja com ambulâncias ou concessões de rádio, porque isso amplia a capacidade de ‘ganhar almas para Cristo”, afirma Saulo Baptista. Apesar disso, a pesquisa revela que escândalos como o “mensalão” e outros chocaram alguns fiéis que reagiram e diminuíram as votações para os “candidatos oficiais” das igrejas. “Ao ingressarem de forma corporativa na política as igrejas adotaram o comportamento populista de manobrar fiéis para ganhar votos, e a presença dessas corporações no espaço público tem repetido vícios da cultura política nacional, não enfrentando questões sociais, remetendo-os ao mundo das causas sobrenaturais.” É o popular “irmão vota em irmão” que permitiu à “bancada evangélica” espaço para exercitar um perfil político fisiológico.

“Sob o tripé cura, exorcismo e prosperidade financeira, e tendo o diabo como origem de todos os males, a Universal demarcou o seu espaço no cenário da religiosidade popular brasileira. Sem maiores elaborações teológicas, a igreja, mais do que qualquer outra denominação evangélica, criou uma mensagem para atender às demandas mundanas imediatas”, completa Almeida. Se a ética protestante orientava a conduta econômica do puritano calvinista, continua o pesquisador, cabendo à instituição religiosa apenas o ensinamento da doutrina da predestinação, com a Universal temos a própria instituição relacionando-se com o mercado, impulsionada pela missão evangelizadora. “É uma verdadeira holding multinacional, cujo produto básico que dinamiza toda a estrutura é a fé.” Daí que não podem faltar nem o capeta, nem as religiões afro-brasileiras, sem as quais a igreja perde totalmente a sua razão de ser e existir. Assim, na ideologia, como nos rituais, o diabo pode até ir embora, mas ele sempre volta.

Fonte: http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-fapesp-a-relacao-dubia-entre-igrejas-neopentecostais-e-o-demonio.html


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