Um dia o cinema ligou seus projetores e o homem mais importante da cultura ocidental deixou de ser exclusividade dos religiosos. Foi então que a figura do diretor de cinema o despregou do posto de ícone intocado, sagrado, e o colocou na vitrine como um personagem de carne e osso, sujeito a todos os problemas humanos. Cada vez mais afastado de seu significado transcendental, passou a ser retratado como palhaço, adolescente irritadiço, sofreu com dramas existenciais e se contrapôs a Deus (leia quadro ao lado.), só para citar alguns roteiros. Não foi tranquila essa mudança, pelo contrário. Os cineastas conquistaram a duras penas a liberdade para retratar Jesus sem amarras.
O impacto da disputa entre o Jesus catequizado pela Igreja e o comercializado pelos estúdios vem sendo analisado pelo historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que confecciona um livro sobre o tema a ser lançado em 2011. “Aquela imagem chapada de Cristo, relatada por padres ou descrita pelos Evangelhos, ganhou movimento com o cinema. Foi assim que aprendemos com quem ele conversava, o tom de sua voz, a cor de sua barba, o que comia e onde morava”, diz Chevitarese. Com Jesus nas mãos de roteiristas, homens e mulheres, com crenças diversas e até ateus, não tardou para que grupos religiosos tentassem frear a exploração de sua imagem.
Entre 1915 e 1945, o parlamento inglês, sob pressão de fundamentalistas cristãos, proibiu as produções cinematográficas de exibir cenas frontais de Cristo. Nos Estados Unidos, Hollywood também cedeu ao lobby da Igreja e assinou um acordo semelhante que durou de 1932 até o início dos anos 1960. Nele, ficou estabelecida a criação de uma comissão responsável por fazer uma espécie de censura prévia das películas. Em “Ben-Hur”, épico de 1959, por exemplo, há apenas uma cena de Jesus Cristo – e nela ele está de costas.
Durante pouco mais de três décadas, portanto, o filho de Deus foi obrigado a deixar o posto de popstar da indústria. Histórias romanceadas que gravitavam ao seu redor passaram a ser produzidas, principalmente nos anos 1930, 1940 e 1950. Ao retornar à cena principal em 1961, com o lançamento de “Rei dos Reis”, viu-se sujeito a todo tipo de interpretação de sua trajetória.
É o que afirma o historiador Luiz Vadico, que acaba de lançar o livro “Filmes de Cristo – Oito Aproximações” (editora a Lápis). “Desde o casamento com Maria Madalena e outras duas mulheres, e ser pai, até ser esquartejado vivo por Mel Gibson”, diz o professor, referindo-se aos filmes “A Última Tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, e “A Paixão de Cristo”, de 2004, dirigido pelo famoso ator americano.
Ligado ao grupo de pesquisa sobre religião e sagrado no cinema e no audiovisual do mestrado em comunicação da Universidade Anhembi-Morumbi, Vadico examinou a produção cinematográfica cristológica entre 1895 e 2004 para sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Campinas, em 2005. Segundo ele, são 21 os principais filmes sobre a vida de Cristo. Essa espécie de teologia feita pelos diretores de cinema alterou sensivelmente o imaginário das pessoas. “Hoje, o público não possui uma imagem unívoca de quem seja Jesus”, afirma ele. No Brasil, “Maria, Mãe do Filho de Deus”, produzido pelo padre Marcelo Rossi, foi o que mais se aproximou de um filme de Cristo, apesar de não focar especificamente a vida dele. Nessa produção, o Nazareno retratado remete à imagem cultivada pelo brasileiro: a de um povo cordial. “Mostro Jesus dançando e se surpreendendo com suas manifestações divinas. É mais próximo ao homem”, conta o diretor Moacyr Góes. É mais uma das várias interpretações construídas sobre a vida Cristo.
PELAS LENTES DOS DIRETORES
Algumas versões de Jesus Cristo no cinema
AMERICANIZADO
O diretor de “Rei dos Reis”, Nicholas Ray, foi acusado por católicos de criar um Cristo americano. Lançado em 1961, após duas grandes guerras, o embate entre o bem e o mal é personificado por Jesus e Barrabás
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